Excerto do texto de Peter Pàl Pelbart
" O Império contemporâneo, diferentemente do Império chinês do conto de Kafka, já não funciona na base de muralhas e trincheiras, e os últimos acontecimentos demonstraram cabalmente a falência da lógica da fortaleza. O Império se nomadizou completamente. Ou melhor, ele é a resposta política e jurídica à nomadização generalizada. Ele mesmo depende da circulação de fluxos de toda ordem a alta velocidade, fluxos de capital, de informação, de imagem, de bens, mesmo e sobretudo de pessoas [4]. Claro que nem tudo circula da mesma maneira por toda parte, e nem todos extraem dessa circulação os mesmos benefícios. O novo capitalismo em rede, que enaltece as conexões, a movência, a fluidez, produz novas formas de exploração e de exclusão, novas elites e novas misérias, e sobretudo uma nova angústia - a do desligamento. O que Castel chamou de desfiliação, e Rifkin de desconexão. Ser ameaçado de desconexão, de desengate - sabemos que a maioria se encontra nessa condição, de desplugamento efetivo da rede. O problema se agrava quando o direito de acesso às redes, como o diz Rifkin (e agora trata-se não só da rede no sentido estrito, tecnológico e informático, mas das redes de vida num sentido amplo) migra do âmbito social para o âmbito comercial. Em outras palavras : se antes a pertinência às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos dependia de critérios intrínsecos tais como tradições, direitos de passagem, relações de comunidade e trabalho, religião, sexo, cada vez mais esse acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis para uma grande maioria. O que se vê então é uma expropriação das redes de vida da maioria da população, através de mecanismos cuja inventividade e perversão parecem ilimitadas."
(...)
"Duas palavrinhas ainda. Uma a respeito do termo biopolítica e outra a respeito do termo multidão. Biopolítico foi o termo forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, sobre a população enquanto massa global afetada por processos de conjunto. Um grupo de teóricos, majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida. A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo-sem-órgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico, aquém da divisão biológico/mecânico, individual/coletivo, humano/inumano. Assim, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza, se descola de sua acepção biológica para ganhar uma amplitude inesperada e ser, portanto, redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault : biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida. A biopolítica como poder sobre a vida toma a vida como um fato, natural, biológico, como zoè, ou como diz Agamben, como vida nua, como sobrevida. É o que vemos operando na manipulação genética, mas no limite também no modo como são tratados os prisioneiros da Al Qaeda em Guantánamo, ou os adolescentes infratores nas instituições de "reeducação" em São Paulo - e os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, não seriam a tentativa de reversão a partir desse 'mínimo' que lhes resta, o corpo nú ? [8]. Em contrapartida, a biopolítica concebida como potência de variação de formas de vida equivale à biopotência da multidão, tal como referida acima."
[4] Cf. Toni Negri e Michael Hardt, Império.
(...)
"Duas palavrinhas ainda. Uma a respeito do termo biopolítica e outra a respeito do termo multidão. Biopolítico foi o termo forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, sobre a população enquanto massa global afetada por processos de conjunto. Um grupo de teóricos, majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida. A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo-sem-órgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico, aquém da divisão biológico/mecânico, individual/coletivo, humano/inumano. Assim, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza, se descola de sua acepção biológica para ganhar uma amplitude inesperada e ser, portanto, redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault : biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida. A biopolítica como poder sobre a vida toma a vida como um fato, natural, biológico, como zoè, ou como diz Agamben, como vida nua, como sobrevida. É o que vemos operando na manipulação genética, mas no limite também no modo como são tratados os prisioneiros da Al Qaeda em Guantánamo, ou os adolescentes infratores nas instituições de "reeducação" em São Paulo - e os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, não seriam a tentativa de reversão a partir desse 'mínimo' que lhes resta, o corpo nú ? [8]. Em contrapartida, a biopolítica concebida como potência de variação de formas de vida equivale à biopotência da multidão, tal como referida acima."
[4] Cf. Toni Negri e Michael Hardt, Império.
Nenhum comentário:
Postar um comentário